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A inexorabilidade do tempo

  • Foto do escritor: Susana Novais
    Susana Novais
  • 3 de abr. de 2020
  • 3 min de leitura

“A distinção entre o passado, o presente e o futuro é apenas uma teimosa ilusão”, dizia Einstein.

A forma como nos apercebemos da passagem do tempo tem, ao longo do tempo, intrigado cientistas e filósofos.

De facto, o tempo constitui, para o nosso cérebro, um complexo problema de integração a larga escala, de difícil resolução. Como é que o cérebro consegue conduzir a sinfonia de pensamentos, percepções, emoções e acções que conjuntamente emergem de processos neuronais distribuídos pelo cérebro? Como é que o cérebro codifica e descodifica informação temporal síncrona e assíncrona? Como é que factores subjectivos, como o nosso estado de espírito, influenciam os nossos julgamentos temporais?

Nesta época de incerteza e intemporalidade que atravessamos, dou comigo a reflectir sobre o tempo, a sua passagem, a sua dimensionalidade, a sua opressividade.

Recordo frequentemente as profundas palavras inscritas numa bela serigrafia de Cargaleiro que os meus Pais sempre tiveram na sala: “O tempo só estrangula quem não ama”. Quando era pequena, passava muito tempo a contemplar tais palavras. Não as compreendia. Mas nunca pedi a ninguém que mas explicasse. Sabia que, com o tempo, iria compreender o tempo, que só estrangula quem não ama.

Indiferente à percepção cognitivo-emocional que dele temos, o inexorável tempo, esse, não pára, não espera.

Temo que muitos dos nossos velhinhos não vão ter tempo para esperar pelo fim disto. Chegará o fim deles antes de chegar o fim disto, que ninguém sabe quando chegará.

Ainda há pouco (há poucochinho, como diria Augusto Gil), aquando do debate sobre a eutanásia, se elevavam vozes indignadas e se empunhavam cartazes revoltados, em frente à Assembleia da República – “Não matem os velhinhos”. Seguramente alimentados por uma certa confusão conceptual, seguramente desconhecedores da natureza processual, volitiva e ética em questão.

Não julguem os velhinhos, diria eu. Nem os velhinhos nem os outros, porque este assunto não diz respeito aos velhinhos, mas à dignidade humana. Quão leteu será o sofrimento de uma pessoa para implorar pela própria morte?

Deixem a eutanásia em paz. Preocupem-se com o coronavírus, que está a dizimar velhinhos por todo o mundo.

Repugnante, o discurso do ministro das finanças holandês, pedindo que Espanha fosse investigada por não ter capacidade orçamental para responder à pandemia. Repugnante também o discurso do vice-governador do Texas, sugerindo que os velhinhos deveriam morrer para salvar a economia do país. “America first”, Trump dixit.

Pela primeira vez em mais de duas semanas, ontem peguei no carro. Dei por mim a conduzir devagar, a observar a distopicamente perturbadora ausência de carros e de gente, a questionar-me sobre onde iriam os outros – poucos – estrada fora. Eu ia regar umas plantas. A pedido dos meus Pais. Já reformados, mas ainda muito activos – física e intelectualmente –, passam longos períodos fora de Lisboa, longe do bulício da cidade, na bucólica calma do campo, com o revigorante ar da praia. Faz-lhes bem. Quando se ausentam por uma dessas temporadas, mais longas, costumam pedir-me que vá regar as plantas de vez em quando.

Lá fui. Sempre que entro em casa deles na sua ausência, sinto-me invadida por uma ternura imensa. A casinha sempre impecável, tudo imaculado. Desta vez, porém, algo inédito: esqueceram-se do rádio ligado. Estranho, pensei. E pensei e pensei. Talvez Freud explicasse tal lapso como o subconsciente desejo de, mesmo na paz algarvia, se manterem informados do que por aqui se vai passando.

Reguei carinhosamente as plantas todas. Reguei até as flores artificiais que estão à entrada, sobre o elegante naperon de renda, para lhes dar algum alento nestes dias difíceis.

“Muito obrigada, minha querida. Desculpa o incómodo. Olha, já que lá vais, aproveita e leva uma carninha que tenho no congelador. E um panito algarvio que está lá guardado para ti. Tens de te alimentar bem.”

São estes, os meus Pais.

São estes, também um dia, os meus velhinhos.

São estes, os nossos velhinhos.

São estes que sempre fizeram tudo por nós. São estes que agora não podemos visitar, abraçar, beijar. São estes a quem agora não podemos pegar nas mãos, porventura já trémulas, cansadas de uma vida inteira de trabalho, para lhes dizer “Obrigada por tudo. Amo-te.”

Como diria Luís J. Santos no lindíssimo texto que recentemente escreveu no jornal Público, “Espera por mim, Mãe.”

Espera por mim, Mãe.

Em breve, isto vai passar. Vamos dar tempo ao tempo.

Em breve, regaremos as plantas juntas, com aquele regador verde que está na varanda junto às avencas da Avó.


E daqui a muito tempo, quando fores velhinha e te tremerem as mãos, regaremos as plantas juntas. Com a minha mão, firme, pegarei na tua, trémula, e juntas regaremos as plantas.

Que o tempo do vírus não estrangule o teu. Porque o tempo só estrangula quem não ama.



 
 
 

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