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Emergência e esperança

  • Foto do escritor: Susana Novais
    Susana Novais
  • 22 de mar. de 2020
  • 5 min de leitura

Atualizado: 23 de mar. de 2020

Em pleno estado de emergência nacional, em plena situação de pandemia, venho falar de esperança.


O mundo, como o conhecíamos, mudou. A nossa vida mudou. Tivemos de parar e de nos recolher, para cuidarmos de nós e dos outros. Infelizmente, foi necessária uma calamidade global para fazermos uma pausa – e percebermos que não podíamos continuar a viver da mesma forma.


O sistema socioeconómico mundial está alicerçado em pilares desiguais, desequilibrados, desumanos. Frágeis, portanto. O ilusoriamente estável equilíbrio de gigantescas corporações, colossos económicos e superpoderes capitalistas revelou as suas debilidades e iniciou o colapso, devido não a um teleológico agente incomensurável, mas a um microscópico agente invisível.


Os nossos líderes tiveram de estar à altura de um hercúleo desafio nunca antes visto. Para preservarem a saúde pública, tiveram de mandar parar países inteiros – sem, no entanto, os poder deixar parar. Tiveram de mandar para casa milhões de pessoas – pedindo-nos, no entanto, que não parássemos de trabalhar.


Muitas vezes resistentes à mudança, com a forçada alteração de rotina apercebemo-nos de que outras formas de vida são possíveis. É possível trabalhar de casa, é possível consumir menos, é possível cuidar melhor de nós e dos outros.


Mas apercebemo-nos também de que muitas pessoas não podem ficar em casa, tendo de permanecer estoicamente na linha da frente no combate a esta epidemia. Destaco particularmente os profissionais de saúde, verdadeiros heróis incansáveis, que tantos criticam. Médicos, enfermeiros, auxiliares e todos os colaboradores, incluindo pessoal de manutenção e limpeza, que tantos ignoram.


E apercebemo-nos também de que as nossas vidas dependem de pessoas que tantos desprezam – aqueles que trabalham nas caixas dos supermercados, os repositores de produtos, os transportadores de bens essenciais, os produtores, os pastores, os agricultores, os pescadores.


Como será a vida daqui para a frente? Diferente, necessariamente. A covid-19 está, tragicamente, a roubar milhares de vidas em todo o mundo, e a infectar muitas mais, em números assustadores e cada vez mais difíceis de contabilizar. As consequências sociais e económicas desta pandemia serão avassaladoras. Mas devastadoras serão também as suas consequências psicológicas – e estas preocupam-me particularmente.


Já há muito tempo que afirmo, sem qualquer dúvida, que o problema da saúde mental é um dos mais importantes dos nossos dias. A ansiedade e a depressão são o grande flagelo da sociedade moderna.


Mais ainda, se as pessoas estivessem mentalmente equilibradas, a humanidade não estaria a enfrentar muitos dos problemas actuais. Como o populismo, por exemplo, que se alimenta da vil exploração de um medo primitivo, irracional e ignorante, cultivado por discursos de ódio que agitam as mais básicas inseguranças e necessidades de segurança do ser humano. Como a violência doméstica e a exploração sexual, por exemplo, decorrentes de psicopatologias dominadoras, egoístas, sádicas, perversas, narcisistas.


Defendo convictamente que até as alterações climáticas, assunto que recentemente adquiriu enorme dimensão, resultam maioritariamente do aproveitamento, por parte de alguns, de uma profunda instabilidade emocional de uma considerável percentagem da população mundial, criando-lhes necessidades de consumo e de conforto anteriormente inexistentes. Uma das principais causas da crise climática que enfrentamos é o consumismo desmesurado. O consumo excessivo de bens, muitos dos quais de utilização efémera e subsequente descarte irresponsável, gera poluição de diversos tipos, particularmente associada aos plásticos, que invadiram os nossos oceanos. Se as pessoas tivessem uma maior estabilidade emocional, se fossem mais felizes, não necessitariam de procurar – em vão – felicidade em mais e mais bens materiais. Se fossem felizes e gratas pelo que têm, não se sentiriam tentadas pelos inúmeros anúncios de incentivo ao consumismo desenfreado com que somos constantemente bombardeados – e não precisariam de estar sempre a comprar o mais recente modelo de smartphone, os sapatos da moda, a camisa da nova colecção, ou mesmo comida “de plástico”.


Ora, era precisamente aqui que queria chegar. Subitamente, surgiu algo que nos fez parar e questionar as nossas vidas, os nossos comportamentos, as nossas escolhas. Algo que fez travar o consumo, diminuir o desperdício, reduzir o tráfego rodoviário e aéreo, baixar a poluição. O planeta agradece, obviamente. Tornaram-se virais as imagens de satélite que demonstram a redução abrupta dos níveis de poluição atmosférica no norte de Itália e das emissões de dióxido de nitrogénio na província chinesa de Hubei, que tem por capital Wuhan, a origem da pandemia. E isto faz-nos, obviamente, pensar.


Como dizia, subitamente surgiu algo que nos fez parar.


Mas algo trágico, tremendamente trágico. Não vou dizer que foi uma bênção ou um mensageiro do além, como tenho lido por aí. Não. Foi – e está a ser – uma verdadeira desgraça. Um horrível cenário dantesco que nunca imaginei viver.


Quero acreditar que quem defende que isto foi a melhor coisa que poderia ter acontecido à humanidade e ao planeta tenha levado demasiado à letra as palavras de Jalaluddin Rumi, no seu famoso poema “A Hospedaria” (“The Guesthouse”), muito citado em livros e cursos de mindfulness. Pois este é um dos perigos do chamado “McMindfulness”, de uma profunda ignorância pretensiosamente disfarçada de “gurismo”. Não, meus caros, não é com frases bonitas, com um curso de uma semana, ou com uma prática de um mês ou mesmo de um ano que se tornam verdadeiros mestres de meditação. Para ser um bom professor de meditação é preciso conhecer a fundo a filosofia oriental e praticar durante décadas – e nunca se considerar um mestre, mas um eterno aprendiz.


Vão lá dizer que isto é uma bênção aos médicos que estão a colapsar de exaustão e que, sem recursos, se vêm na dilacerante situação de ter de escolher quem salvar e quem deixar morrer.


Tendo dito isto, penso que devemos, todos, reflectir profundamente sobre tudo o que está a acontecer, sobre quais os ensinamentos que podemos tirar desta situação, e sobre o que podemos fazer daqui por diante. São as verdadeiras tragédias que nos põem à prova como pessoas, povos, nações. É nestas alturas que temos que nos recompor, recentrar, reinventar, reerguer.


Surgiu algo invisível que nos obrigou a ficar em casa, privando-nos de muitas liberdades que dávamos como garantidas. Deixámos de ir à praia, ao cinema, ao futebol. Deixou, aliás, de haver cinema e futebol. Deixámos de poder beijar, abraçar e tocar nos familiares e amigos que encontramos. Deixámos, aliás, de poder encontrar-nos com familiares e amigos.


E começámos a ver como essas coisas são importantes para nós. Começámos a perceber como as “pequenas” coisas da vida são, na realidade, enormes. Ironicamente, surgiu algo invisível que nos fez abrir os olhos e, nas sábias palavras do Principezinho, constatar que só se vê bem com o coração e que o essencial é invisível aos olhos.


Penso que chegou a altura de começarmos a ver mais com o coração, a dar mais valor ao que temos, a sentir mais gratidão por tudo aquilo e todos aqueles que temos nas nossas vidas. A dar também mais valor à nossa saúde – física e mental – e saber preservá-la. A saber preservar também – e respeitar – o nosso planeta. A ter uma alimentação saudável e praticar exercício físico. A sorrir mais e fazer sorrir os outros. A passar mais tempo com aqueles que amamos. A prestar mais atenção aos nossos pensamentos, aos nossos sentimentos e às nossas emoções. A observar e conhecer os nossos processos mentais através da prática introspectiva de meditação, aumentando assim a nossa consciência de nós próprios, dos outros e daquilo que nos rodeia, e promovendo a nossa saúde e felicidade.


Por agora, fiquem em casa. Aproveitem o tempo em família. Vamos todos ficar bem.




 
 
 

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